“A madrinha!”
“Às cachopas de Valpaços”
Luís Agá
Fernandes
I
Ele subia o tapete
rolante do «shopping».
Ia a meio.
Ela
descia o tapete rolante do «shopping».
Estava no
cimo.
Não tiravam os
olhos um do outro.
Ele mexeu os lábios e
disse: amo-te!
Ela
mexeu os lábios, deu brilho ao olhar e disse: odeio-te!
Ele chegou ao cimo da
subida e voltou-se para trás.
Contemplativo e
estranho, viu-a de costas
Ela
chegou ao fim da descida e voltou-se para trás.
Pôs mais
brilho no olhar.
Iluminou ainda
mais o sorriso.
Mexeu os
lábios.
E disse: amo-te!
Ele mexeu os lábios e
soltou um grito abafado: adoro-te!
Os que subiam
e desciam o tapete rolante do «shopping» bateram com a curiosidade na cara do
homem na subida e logo desviaram o espanto para o corpo da mulher na descida.
Ela
saiu do «shopping» com um ar cheio de graça.
Ele deu meia dúzia de
passos tremidos e sentou-se no banco, a meio do corredor. Apoiou os cotovelos
nos joelhos. E escondeu a cara, os olhos e os pensamentos nas conchas das mãos.
II
O Liceu era no
Jardim das Freiras.
A Escola
Comercial e Industrial, no Jardim do Bacalhau.
O Liceu
continuou nas “Freiras”.
A Escola
Comercial e Industrial teve casa nova, mais pertinho do rio.
Os estudantes
“comerciais
e industriais” resolveram fazer uma festa de «finalistas».
Prepararam a
sala maior para o baile.
Foram à Galiza
contratar “Los
Satélites da Nicarágua”.
Românticos,
coleantes, os ritmos latinos convidavam ao «pé – de – dança».
Ele dançava com uma
cachopa que trazia de baixo de olho, convencido da sua competência de bom
dançarino.
Ela
dançava com ar divertido, convencida da sua beleza e da fatalidade dos seus
lindos olhos.
Quando os
pares de ambos ficaram de costas voltadas, ele mexeu os lábios e disse: amo-te!
Três compassos
depois, quando os pares de ambos ficaram de costas voltadas, ela mexeu os
lábios e disse: odeio-te!
Duas danças dançadas,
ela puxou-lhe um braço e ordenou: quero
dançar contigo.
O seu par
ficou furioso. Acolheu-se junto de um grupo de amigos, a deitar lume pelos olhos,
a bufar como um bisonte, a espumar raiva como um cão danado.
Ele e Ela
foram dançar.
Não mais se «largaram».
Os “Satélites
da Nicarágua” tocaram o «Jalousie».
Ele e Ela
nem se deram conta de que ficaram sós, no meio do salão, a prolongar os últimos
passos daquele tango.
Na
assistência, uns riram a “bandeiras despregadas”; outros bateram palmas.
De mão dada,
saíram para o corredor.
Ambos roubaram
um ao outro, ao mesmo tempo, um beijinho sôfrego e breve.
Ela
sentou-se numa cadeira. E chorou.
O seu par mostrava
a sua fúria por ter ficado “desamparado”. Pedia aos amigos para o segurarem,
senão matava alguém!
Ele pediu um copo de
água para ela.
Ela
agarrou-lhe a mão. Com força. Como a não querer deixá-la nunca.
Ele ouviu-lhe
baixinho: … a
minha madrinha!
Ela
ergueu-se da cadeira.
Chamou umas
amigas.
E disse-lhes: vamos
embora!
Ele ficou no cimo das
escadas a vê-la partir.
Ela
desceu.
E à porta, voltando-se
para trás, disse, de modo que todos ouvissem: amo-te!
III
Cinquenta anos
depois, sentado no banco do «shopping», a meio do corredor, voltou-se para mim,
e falou:
-“A
travessia de todos os continentes levou-me sempre para um “Cabo de Tormentos”.
Peregrino
toda a vida, ainda não cheguei à Terra Santa.
As
minhas «entradas» mostram bem as «Partidas» que os sonhos, as ambições e
os desejos me aprontaram.
Quando
morrer, não me importo de ir para o Inferno. A ele já estou habituado nesta
vida”!
M.s, 5 de Agosto de 2014
Romeiro
de Alcácer
1 comentário:
Elaboração um pouco complexa dos trajectos das nossas vidas!!
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